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Orçamento secreto para além da aridez do direito financeiro

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Recursos públicos objeto de distribuição, sem transparência, são, em grande medida, provenientes do exercício da competência tributária A expressão “orçamento secreto” ocupa a pauta pública desde 2021: uma série de reportagens publicadas pelo jornal "O Estado de São Paulo" descortinou um esquema de distribuição de verbas orçamentárias a partir de critérios pouco republicanos e sem qualquer transparência. Nas últimas semanas, em razão da disputa presidencial, o tema tem se mostrado mais presente do que nunca.

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A origem do debate está na promulgação da Emenda Constitucional nº 100/2019, que teve por objetivo conferir maior impositividade ao orçamento público – em poucas palavras, tornar obrigatória a execução orçamentária de determinadas despesas. Nesse contexto, por ocasião da publicação da LDO/2020 (Lei nº 13.898/2019), houve a previsão da obrigatoriedade da execução das emendas do relator do orçamento (RP 9), visando à realização de despesas que deveriam ser priorizadas pelo Poder Executivo (art. 6º, § 4º, inciso II, alínea “c”, item 4). Tal determinação foi vetada pelo Presidente e o veto foi mantido pelo Congresso Nacional. Na LDO/2021 (Lei nº 14.116/2020), novamente tentou-se aprovar a impositividade das emendas do relator, sem sucesso: o artigo 7º, § 4º, inciso II, item 4 foi vetado pelo Presidente da República. Os vetos, no entanto, não impediram a realização das despesas.

As emendas do relator (RP 9), a despeito de públicas, contavam com poucos mecanismos de controle que viabilizassem a avaliação quanto aos critérios de destinação do dinheiro público. Exatamente por isso, ainda em 2021, foram ajuizadas as ADPFs850, 851 e 854 para questionar os atos de execução orçamentária que envolviam tais emendas. Em novembro de 2021, houve o provimento parcial da medida cautelar requerida nas ações mencionadas e, ato contínuo, tal medida foi referendada pelo Pleno do STF. O resultado foi a divulgação, pelo Congresso Nacional, das despesas classificadas como RP 9 por emenda, órgão orçamentário, dotação atualizada, empenhada, liquidada e paga nos anos de 2020 e 2021.

Em dezembro de 2021, foi publicada a Resolução nº 2/2021, do Congresso Nacional, que previu a publicação individual das emendas do relator, com disponibilização posterior em relatório a ser publicado no sítio da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO). As determinações, no entanto, são válidas apenas para o orçamento de 2022. Segundo as LDOs para 2022 e 2023, as verbas disponíveis para as emendas do relator são de, respectivamente, R$ 16,5 bilhões e R$ 19,4 bilhões.

Para 2023, um agravante: não haverá, por ocasião da execução das emendas, a indicação dos beneficiários e a ordem de prioridade. Ainda que a falta de transparência tenha sido a regra em 2020 e 2021, o descortinamento quanto à distribuição de verbas públicas deveria imprimir maior controle das emendas do relator.

Plenário durante sessão do Congresso Nacional

Marina Ramos/Câmara dos Deputados

O dispositivo que sinalizava maior controle público foi, todavia, vetado pelo Presidente da República. Tratava-se do artigo 79, inciso II da LDO/2023 (Lei nº 14.436/2022), segundo o qual a execução das programações das emendas deveria observar “as indicações de beneficiários e a ordem de prioridades feitas [...] conjuntamente pelo Presidente da CMO em exercício quando da aprovação da LOA/2023 e pelo respectivo autor da emenda”. Como fundamento para o veto, indicou-se ofensa ao interesse público e à impessoalidade, ao lado da redução da flexibilidade na gestão orçamentária. O resultado é um retrato dos últimos anos: distribuição duvidosa de verbas. Reforça-se a ofensa aos princípios da transparência e publicidade que devem reger a realização de despesas públicas.

A expressão “orçamento secreto”, aliás, é resultante justamente da falta de transparência em relação a essa parcela das execuções orçamentárias, cujos resultados geram desconfianças justificadas de esquemas de corrupção. Como mostra reportagem de Breno Pires publicada na "Revista Piauí" em julho deste ano, Bom Lugar, uma cidade no interior do Maranhão, não possui hospital, mas aumentou seus atendimentos em saúde em 1.300% de um ano para o outro. Já em Igarapé Grande, também no Maranhão, as “consultas médicas” atingiram a média de 34 por habitante, maior que o recorde mundial, detido pela Coréia do Sul, com 17 consultas por pessoa. Por fim, Santa Quitéria do Maranhão “registrou mais exames para detectar infecção pelo vírus HIV do que a cidade de São Paulo” e “Pedreiras disse ter feito tantas extrações dentárias que dá média de dezenove dentes extraídos por habitante”.

Os dados trazidos pela reportagem são corroborados pelo recente parecer do Tribunal de Contas da União sobre as contas do Presidente da República de 2021. Acerca das emendas RP 9, o Tribunal destaca a inconsistência na distribuição de recursos: “o montante global dos repasses acima de R$ 50 milhões, que representa 7,5% das emendas de relator-geral de 2021, foi destinado a uma área territorial que concentra quase 14 milhões de habitantes (6,52% da população nacional)”: os municípios de s de Arapiraca (AL), São Félix do Xingu (PA), Campina Grande (PB) e São Gonçalo (RJ) concentram R$ 343,6 milhões de repasses.

O problema em torno dessas escolhas, alerta o TCU, é a ausência de “qualquer evidência de observância de critérios objetivos nas escolhas alocativas e dos pressupostos que balizam o planejamento governamental”. Para reforçar esse ponto, o parecer ainda destaca que as capitais, que concentram cerca de 48 milhões de habitantes, receberam “R$ 728,76 milhões de emendas de relator-geral em 2021, valor correspondente a pouco mais de 5,5% do total repassado [a outros] municípios”. A falta de transparência e a ofensa a diversos dispositivos constitucionais e das normas de responsabilidade fiscal perpassam as considerações do TCU sobre o mecanismo.

A questão, portanto, extrapola a tecnicidade e aridez com as quais geralmente questões de direito financeiro são tratadas. As emendas do relator implicam mais que troca de favores políticos e beneficiamento de certa ala do Congresso Nacional. Trata-se de instrumento que viabiliza a corrupção e corrompe a lógica orçamentária, que deve ser republicana e transparente.

Vale lembrar que os recursos públicos objeto de distribuição são, em grande medida, provenientes do exercício da competência tributária. Não bastasse a estrutura regressiva de tributação que temos no Brasil, agora ainda contamos com um mecanismo institucionalizado das nossas piores práticas patrimonialistas, de favorecimento de currais eleitorais e de manipulação de privilégios. O Supremo Tribunal Federal irá analisar a constitucionalidade do mecanismo nas ADPFs mencionadas. Razões para o reconhecimento da inconstitucionalidade não faltam. Efetiva transparência e critérios republicanos de alocação de gastos públicos não devem ser mera retórica, mas comandos impositivos, que servem à preservação das contas públicas e ao Estado Democrático de Direito como um todo.

Fonte: Valor Invest

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