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Quem vive embaixo do cobertor cinza?

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Sociedade e empresas têm papel fundamental no enfrentamento da miséria crescente

De janeiro a maio, 5.039 pessoas foram viver nas ruas da capital paulista, juntando-se a um contingente que hoje é de 42.240 indivíduos — número 80,9% superior ao de 2019. Em todo o país, mais de 180 mil brasileiros e brasileiras estão nessa situação, segundo dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (POLOS-UFMG).

Cobertores cinzentos e barraquinhas distribuídos pela prefeitura e organizações da sociedade civil estão espalhados por toda a cidade, embaixo de viadutos e nas calçadas. Em canteiros centrais de largas avenidas é possível ver “cabanas” feitas com sacos plásticos. Os poucos vãos de edifícios que ainda não foram cercados abrigam camas de papelão e colchões velhos.

Esse é o universo da SP Invisível, organização da sociedade civil que dá voz aos que moram nas ruas paulistanas e também se mobiliza para levantar doações, levar alimentos, agasalhos e artigos de higiene para a população vulnerável — que tem nome e história de vida.

O projeto nasceu a partir de um grupo de jovens que frequentavam a Igreja Batista da Água Branca. Um pastor propôs que saíssem pela cidade e registrassem em fotos o que era invisível. Muitas das imagens captadas no trajeto eram de moradores em situação de rua. “As pessoas estavam todas cobertas, escondidas e não podiam ser identificadas, não tinham rosto. Aí a ideia de dar rosto através da fotografia”, conta André Soler, um dos fundadores da organização, em apresentação da iniciativa.

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Depois vieram os vídeos, que podem ser conferidos no Instagram, Facebook e TikTok, dando voz ao resgate das trajetórias de vida. Em 2021, foram mais de 300 entrevistas e depoimentos. Neles, o sofrimento com a aversão à pobreza é evidente. As condições especialmente violentas para as mulheres que estão na rua ficam claras: elas temem ser estupradas, dizem que são vistas como prostitutas e que sexo é muitas vezes a moeda de troca esperada. Manter a higiene é difícil, no período menstrual, quase impossível. O medo é constante.

O inverno é especialmente cruel, dizem os entrevistados, como Antonia, que vive na região da avenida Santo Amaro, zona Sul. “Fico me perguntando: o que será que eu fiz para merecer dormir no frio, na calçada, com 78 anos de idade? Esse não é o Brasil que eu quero para meus netos.”

“Acordar e não ter o que comer, deitar e não ter onde dormir... Isso não é vida! Onde quer que eu vá, já me olham com cara feia, chamando de lixo... Meu maior sonho é ter dignidade, se é que isso ainda existe em mim”, afirma Cássio, que vive perto do Teatro Municipal, no Centro, em seu depoimento. “Pra mim, a rua é sinônimo de frio, fome, repressão e julgamento”, define Everton, há 15 anos na rua por causa de desavenças familiares.

Se a população em situação de rua — que está diante de nossos olhos a cada vez que abrimos a janela ou saímos de casa — é invisível, a vulnerabilidade que se esconde atrás de paredes muitas vezes improvisadas com tábuas de madeira, em locais precários que pouco conhecem os serviços públicos, também é solenemente ignorada.

Em janeiro deste ano, viviam na capital paulista 619.869 famílias em situação de miséria, aumento de 30,82% em relação a 2021, quando eram 473.814 famílias, com base em números do CadÚnico. Porém, alertam especialistas, como muitas pessoas estão fora do cadastro, os dados não refletem a dimensão real do problema.

Números alarmantes dão contornos à catástrofe em todo o país. Hoje, 33,1 milhões de brasileiros passam fome, dos quais 14 milhões começaram a enfrentar essa condição no último ano, sinalizando um rápido agravamento do quadro. Apenas quatro em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação — condição de segurança alimentar.

Os demais lares são divididos em uma escala que vai desde os que permanecem preocupados com a possibilidade de não ter alimentos no futuro até os que já passam fome. A insegurança alimentar grave é maior nos lares comandados por mulheres, pessoas negras ou pardas e nas famílias do Norte e Nordeste.

De acordo com o 2 Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, em números absolutos, são 125,2 milhões de brasileiros que passaram por algum grau de insegurança alimentar - aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018.

Os dados, levantados pela pesquisa da rede Penssam, mostram que a fome quase (a ressalva é importante) desaparece nos lares com renda superior a um salário mínimo per capita: em 67% deles, o acesso a alimentos é pleno e garantido. Mas não há seguro contra a privação. Com a crise econômica somada um salário mínimo defasado, cujo reajuste não tem acompanhado a velocidade de alta da inflação, 3% dos lares nessa faixa de renda abrigam moradores em situação de fome, 6% convivem com algum grau de restrição quantitativa de alimentos (insegurança alimentar moderada) e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação (insegurança alimentar leve).

Em “Live do Valor” realizada na primeira semana de agosto, Cristovam Ferrara, head do Valor Social, área de responsabilidade social da Globo, alertou para a necessidade de as companhias identificarem, dentro de seu negócio, como podem contribuir e também engajar o quadro de funcionários. Ele considera “inadmissível que qualquer empresa que queira olhar para fora, se dizer socialmente responsável”, possa ter algum colaborador em seu quadro, direto e indireto, que esteja entre os 60% da população com algum grau de insegurança alimentar.

Sociedade e empresas têm um papel fundamental para mudar esta situação. Não apenas com doações — que são indispensáveis, estão escassas e muito aquém da necessidade —, mas também com cobranças por políticas públicas que possam realmente reverter o quadro.

“Se você não passa fome, seja parte da solução” é o mote da campanha “15 por 15”, para levar o essencial aos 15% da população brasileira que não tem o que comer. Informações em: 15por15.org e paraquemdoar.com.br

Para conhecer um pouco do trabalho da SPInvisível, que já promoveu reencontros familiares, conseguiu ocupação, recuperou documentos e amor próprio de moradores em situação de rua: https://www.instagram.com/spinvisivel/reels/?hl=pt-br .

Sobre a autora

Celia Rosemblum é editora de projetos especiais no Valor Econômico, onde está desde sua fundação, em 2000. É jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com pós-graduação em gestão responsável para a sustentabilidade pela Fundação Dom Cabral. Passou pelas redações da “Gazeta Mercantil”, de "O Estado de S.Paulo" e atuou em comunicação corporativa. É jornalista amiga da criança.

Célia Rosemblum

Valor

Fonte: Valor Invest

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