O comportamento e as ideias defendidas por Donald Trump são tão difíceis de serem enquadrados em grandes sistemas de compreensão que os especialistas inventaram um termo só para designar a sua política, que ficou conhecida como “trumpismo”. Um dos presidentes mais controversos da história dos Estados Unidos, o empresário do mercado imobiliário inaugurou uma diplomacia feita através do Twitter, que tende mais para o confronto e para o unilateralismo do que para uma estratégia diplomática propriamente dita. A relação com o Irã, que se deteriorou ainda mais nos últimos quatros anos, é um exemplo disso. Em uma manobra pouco compreensível, o republicano retirou os Estados Unidos do acordo nuclear e impôs sanções à nação persa, sem propor um novo tratado ou levantar novas exigências ao país – como o fim do financiamento ao terrorismo, que ele tanto condena. A resposta do governo iraniano, que é dividido entre o presidente Hassan Rouhani e o aiatolá Ali Khamenei, foi quebrar a sua parte do combinado, enriquecendo urânio em quantidades superiores ao permitido. O que já estava ruim se tornou ainda pior com a ameaça de uma guerra nuclear no início de 2020, quando Trump ordenou o assassinato do principal general iraniano, Qassem Soleimani. A partir daí houve uma sequência de trocas de ameaças que não se concretizaram em um conflito armado. O caso, no entanto, serve para ilustrar uma tendência. “Desfazer o que foi feito anteriormente, sem colocar outra coisa no lugar, resume bem o governo Trump”, afirma o professor de relações internacionais da FAAP Carlos Gustavo Poggio.
Conhecido pelo seu talento com a publicidade e a autopromoção, Donald Trump se vangloriou dos seus esforços diplomáticos para que Israel fosse reconhecida por quatro países árabes nos últimos meses, todos eles inimigos do Irã: Marrocos, Bahrein, Emirados Árabes e Sudão. Os acordos aconteceram mediante concessões simples por parte dos Estados Unidos, como reconhecer a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental ou tirar o Sudão da lista de países que apoiam o terrorismo, mas foram vendidos como grandes avanços para a paz no Oriente Médio. A retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão e do Iraque, uma promessa de sua primeira campanha à presidência, seguiu uma estratégia semelhante e aconteceu somente no ano em que o republicano tentou a reeleição. O restante da política externa do governo norte-americano em 2020 foi coerente com a ideologia que Donald Trump sempre resumiu em duas palavras: “America First”, ou seja, Estados Unidos em primeiro lugar. Em meio à pandemia do novo coronavírus, o presidente revezava as suas críticas entre a China, a quem atribuía uma “nacionalidade” do vírus, e a Organização Mundial da Saúde (OMS), para quem deixou de destinar fundos. Segundo Poggio, o comportamento padrão de um presidente descontente com uma entidade global seria buscar mais influência dentro dela, e não partir para o rompimento, como o republicano fez. “A relação de Trump com a OMS reflete a visão que ele tem de todas as organizações multilaterais”, explica. Para o especialista em política externa norte-americana, o bilionário possui uma “visão contábil” das relações internacionais e não percebe os benefícios da liderança dos Estados Unidos, sendo que a retirada da nação desse papel criou vácuos de poder que foram preenchidos justamente pela sua rival, a China.
Outras atitudes relacionadas ao combate à Covid-19 também foram auto centradas, principalmente no que diz respeito às vacinas. Os Estados Unidos decidiram não fazer parte da Covax, uma coalisão criada pela OMS para garantir imunizantes às nações mais pobres do mundo, e deram a entender que queriam ter um acesso prioritário e exclusivo à vacina. Além disso, o surto do novo coronavírus foi usado como justificativa para negar asilo a estrangeiros e deportar os que estavam no país, decisão vista por alguns críticos como um pretexto, já que o presidente é declaradamente a favor de uma política anti-imigratória. Apesar de não ter sido um exemplo vivo para a população norte-americana, Donald Trump se mostrou favorável ao uso de máscaras e do distanciamento social no início da pandemia. À medida em que teve que injetar mais e mais dinheiro na economia, no entanto, o presidente passou a defender a reabertura econômica a partir de maio, mesmo reconhecendo que isso poderia gerar mais mortes no país. O republicano também foi um grande defensor do uso de certos medicamentos para tratar a Covid-19, especialmente o remdesivir, apesar de ainda não existirem evidências científicas de sua eficácia – ele mesmo acabou se tratando com esse fármaco quando contraiu a doença em outubro. O fato é que, sob a sua gestão, os Estados Unidos se tornaram o país mais afetado do mundo pelo novo coronavírus, tanto em número total de casos quanto de mortes. Por outro lado, tudo indica que a economia do país terá uma recuperação mais rápida do que, por exemplo, a dos países europeus. “Assim como verificamos após a crise financeira de 2008, a economia dos Estados tende a ser mais resiliente”, ressaltou o professor de relações internacionais.
Como não poderia ser diferente, no entanto, a liderança de Donald Trump no combate à pandemia de coronavírus foi duramente criticada pelos democratas, representados nas eleições presidenciais desse ano pelo veterano político Joe Biden. Depois de um primeiro debate marcado por trocas de farpas e interrupções constantes, vindas de ambas as partes, o segundo encontro entre os candidatos acabou sendo cancelado depois que o presidente e a primeira-dama, Melania Trump, testaram positivo para o novo coronavírus. Como a sugestão de uma discussão virtual desagradou o republicano, Trump e Biden acabaram respondendo às perguntas em transmissões ao vivo de emissoras diferentes, apesar de simultâneas. Os norte-americanos tiveram que escolher qual entrevista assistir e o presidente não conseguiu reverter as pesquisas eleitorais, que já indicavam liderança do democrata. As projeções se mantiveram praticamente as mesmas mesmo depois do terceiro e último debate – esse, sim, civilizado – entre os candidatos. Quando a contagem dos votos oficiais começou a materializar a sua derrota, Trump passou a fazer uma série de acusações de fraude eleitoral através do seu perfil no Twitter que, por sua vez, se tornaram reais processos na Justiça. Uma a uma, essas ações foram sendo desconsideradas até que o Colégio Eleitoral oficializou a vitória de Joe Biden no dia 14 de dezembro, tornando Donald Trump o décimo presidente da história dos Estados Unidos a não ser reeleito.
Praticamente nenhum especialista acreditava que os processos de fraude eleitoral seriam capazes de reverter o resultado das eleições, de forma que a insistência de Trump nessas tentativas chega a parecer estranha. Poggio, que conduziu pesquisa de pós-doutorado na Georgetown University sobre a ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, explica que o republicano agiu dessa maneira por três motivos. O primeiro está relacionado ao seu próprio ego e à dificuldade em admitir sua derrota. O segundo tem a ver com a possibilidade de criar uma narrativa para os seus apoiadores, que o verão como vítima de um sistema fraudado. O terceiro, por fim, foi a possibilidade de angariar fundos para continuar sendo um ator político relevante no futuro. Desde o dia da eleição, Trump conseguiu arrecadar mais de US$ 200 milhões de eleitores dispostos a financiar os esforços judiciais da equipe republicana. Como a sua própria carreira no mundo dos negócios indica – e como o documentário “Trump: Um sonho americano”, disponível na Netflix, revela – o empresário sempre foi bom em moldar a sua imagem a seu favor.
Em meio a tantas polêmicas, o fato de Donald Trump ter sido o terceiro presidente em toda a história dos Estados Unidos a sofrer um processo de impeachment – que não se concretizou – foi praticamente esquecido ao longo do ano, mesmo durante a sua campanha de reeleição. No passado não tão distante de janeiro de 2020, antes da pandemia do novo coronavírus, o presidente teve que se defender de um inquérito que revelou que ele havia solicitado ajuda da Ucrânia para interferir, a seu favor, na eleição presidencial que ele agora diz ter sido fraudada. Como os republicanos eram maioria no Senado, ele acabou sendo absolvido das acusações. O ponto interessante de ser observado é que a fidelidade do eleitorado de Trump praticamente não mudou nesse período. Segundo Poggio, a aprovação do republicano sempre ficou entre 30% e 40%, sem sofrer grandes quedas ou crescimentos. “O processo de impeachment mostra que a opinião popular está muito cristalizada nos Estados Unidos”, explica o especialista.
Outro exemplo disso foram as manifestações contra o racismo, que tiveram início em maio, após George Floyd ser morto asfixiado por um policial. Além de ter tido uma postura negacionista, recusando-se a falar sobre o racismo estrutural enraizado em seu país, o republicano ameaçou usar as Forças Armadas para reprimir os protestos. “Trump identificou nesses movimentos uma oportunidade política de se colocar como o candidato da lei e da ordem – e de colocar os democratas como os que favorecem a destruição do patrimônio, apesar dos casos de violência terem sido muito pontuais”, analisa Poggio. Ainda assim, o empresário conquistou uma votação bastante expressiva entre o eleitorado negro, especialmente quando comparado a outros republicanos que o antecederam. Em 2016, 8% dos negros preferiram Trump. Em 2020, os números subiram para 12%. O crescimento pode ser explicado por outras pautas defendidas pelo bilionário, como economia e segurança, mas ainda representa um acontecimento “digno de ser estudado”, como colocou o professor de relações internacionais da FAAP. “Quando a relação do eleitorado com a política é emocional e de identidade, parecida com a relação que se tem com um time de futebol, esse tipo de fenômeno acontece”, explica Poggio. Um comportamento, portanto, tão difícil de ser enquadrado que só pode ser descrito mesmo como “trumpismo”.
Fonte: Jovem Pan