O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi destaque internacional após sua viagem a Nova York para participar da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada na sede da ONU na última terça-feira, 19. Além de realizar o discurso de abertura da assembleia, que é tradicionalmente feito pelo presidente brasileiro, Lula teve 9 encontros com chefes de Estado e autoridades como o diretor-geral da ONU, António Guterres, e o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. As agendas mais importantes foram as reuniões com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e com o presidente estadunidense Joe Biden. Esta foi a oitava vez que o Lula participou da assembleia. Ao longo de seus dois mandatos anteriores, ele foi ao evento entre os anos de 2003 e 2009, com uma ausência em 2010. A reunião de líderes mundiais teve, neste ano, foco na busca por soluções contra fome e mudanças climáticas. O presidente brasileiro também se debruçou sobre temas como a precarização do trabalho e a guerra na Ucrânia. Confira abaixo um resumo dos principais momentos de Lula na viagem.
Discurso de abertura
Lula foi enfático ao fazer um apelo para que a comunidade internacional priorize a luta pelo fim da desigualdade social e voltou a cobrar dos países desenvolvidos mais investimentos para o combate à fome e ao aquecimento global. Na visão do economista e doutor em relações internacionais pela Universidade de Lisboa Igor Lucena, o enfoque de Lula se opõe diretamente ao que o ex-presidente Jair Bolsonaro vinha propondo em seus discursos na ONU. “O presidente Lula tenta trazer um discurso, que eu gostaria de dizer que seria mais racional, quando a gente faz uma comparação com os discursos do presidente Bolsonaro. Então, de uma certa maneira, acredito que foi extremamente positivo o presidente Lula trazer um discurso institucional do ponto de vista da história brasileira, diria que não houve a tentativa de puxar temas polêmicos e muitas vezes temas que beiravam teorias de conspiração”. Vale destacar que o discurso do petista empolgou a plateia em Nova York e foi interrompido por aplausos sete vezes. De acordo com o especialista, o presidente manteve sua fala centrada a todo momento em temas que, apesar de serem cativos à sua pauta interna, têm grande relevância no cenário mundial.
“Também tentou trazer para a pauta do discurso das Nações Unidas os temas que são caros a ele de política interna, que é o combate à fome e a questão da desigualdade”, afirmou. No entanto, Lucena aponta para certos posicionamentos do presidente em suas críticas aos países mais ricos do planeta e ao culpar os “escombros do neoliberalismo” pelos problemas globais. “Ele puxa como se os problemas de desigualdade no Brasil viessem pelo neoliberalismo. E essa visão é muito antiquada, porque o neoliberalismo não está mais em prática, ele pode ter sido praticado do final dos anos 90 até o início dos anos 2000, mas nos últimos 10 anos nós estamos assistindo uma volta do poder dos Estados (…) Obviamente nós não estamos num sistema econômico perfeito, porém, a situação vem melhorando. Acho que culpar o neoliberalismo e as potências internacionais como se fossem grandes culpadas da desigualdade no mundo não é correto. Mas obviamente isso vem de uma política mais à esquerda do próprio presidente Lula. Então, eu consideraria que o seu discurso teve pontos de acertos e pontos que acredito que são um pouco equivocados.”
Durante sua fala, Lula também fez críticas sutis aos Estados Unidos. Sem citar o país, ele se posicionou contra as punições ao jornalista Julian Assange, ao embargo econômico de Cuba e à formatação do Conselho de Segurança da ONU, que tem os EUA como um de seus principais representantes. Em outro momento, o presidente voltou a cobrar dos países ricos posicionamentos para mitigar os efeitos da crise climática, ressaltando que o "Sul Global" não quer seguir o modelo adotado pelas nações consideradas desenvolvidas. Na parte final de seu discurso, Lula comentou os conflitos armados que o mundo vive hoje, citando a crise humanitária no Haiti, conflitos no Iêmen, as ameaças na Líbia e na Guatemala e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão. Ao falar sobre o conflito na Ucrânia, Lula voltou a defender as negociações entre os dois países como melhor maneira para solucionar o conflito. Confira o discurso na íntegra clicando AQUI.
Tensão entre Lula e Zelensky
O encontro entre Lula e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky roubou os holofotes da viagem, sendo mais repercutido do que a reunião com o presidente dos Estados Unidos. Isso porque ambos se desencontraram no G7, após o cancelamento de uma reunião bilateral. Além disso, o presidente do Brasil defende a criação de um grupo para trabalhar em um acordo de paz, medida que o ucraniano julga ineficiente. Nos últimos meses, Zelensky subiu o tom contra o petista por acreditar que ele reproduz o discurso de Vladimir Putin, presidente da Rússia. Lula condenou a invasão à Ucrânia, mas não concorda com as sanções econômicas aplicadas e, neste mês, chegou a dizer que Putin não seria preso se visitasse o Brasil. Depois, voltou atrás e declarou que essa decisão cabe à Justiça brasileira. Na opinião de Igor Lucena, apesar de tensa, a reunião foi positiva para o Brasil. “Tenho uma visão muito clara de que foi muito positivo o presidente Lula se encontrar com o presidente Volodymyr Zelensky antes de se encontrar com o presidente Vladimir Putin. A gente já havia visto Zelensky com o chanceler Celso Amorim, e também Putin com Celso Amorim. Entretanto, o presidente Lula ainda não”.
“Levando em consideração que o Brasil está na presidência do Mercosul e negociando um grande acordo de livre comércio, é fundamental esse movimento. Isso demonstra para os europeus uma disposição de pensamento e de debate do presidente Lula. Não acho que o presidente tem capacidade de mudar tudo o que ele já disse. Porém, eu acredito nitidamente que foi um gesto positivo. De maneira prática, o encontro foi tenso, dava para perceber a expressão tensa entre Zelensky e Lula, com muitos assessores, o que não é positivo. O ponto principal é que a visão do Itamaraty ainda é controversa, não há uma visão linear sobre o conflito“, observou.
O especialista também avaliou a proposta de Lula de criar um grupo de países relativamente neutros ao conflito que mediassem as negociações para selar um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia. Lucena argumenta que a ideia é arriscada e incerta. “A visão do presidente Lula é que o Brasil se imponha desta maneira porque chegará um momento de debate claro de paz, onde os custos de manutenção da guerra serão infinitamente maiores do que o custo de um acordo de paz. Isso não acontece ainda, e eu acredito que essa visão está equivocada (…) A visão dos europeus e dos americanos é, a todo custo, impedir o avanço russo, independente disso, vão apoiar a Ucrânia. Então acho que o governo brasileiro aposta que vai chegar o momento de negociação de paz, que vai ser mais útil às potências do que a manutenção da guerra, e ele se propõe desde já a estar neste local entre não ser parte do conflito e ser um grande mediador de paz”.
“Considero a guerra imprevisível, os elementos que estão sendo colocados como drones aquáticos, os próprios ingleses fazendo a manutenção da segurança de navios ucranianos no mar da região da Crimeia e todos os outros aspectos imprevisíveis da guerra vão contra essa visão e essa teoria do Itamaraty. Então, acho que é uma visão negativa, e a tentativa do presidente Lula é mostrar que existe uma visão do governo brasileiro de ouvir os dois lados (…) Não acredito que o Brasil pode ser de fato um negociador de paz dentro desse conflito, porque esse conflito vai, como os europeus e americanos estão dizendo, até que a Rússia recue e devolva os territórios anexados”, argumenta.
Lula e Biden: um encontro estratégico
O encontro entre Lula e Joe Biden se deu após uma série de alfinetadas contundentes que o brasileiro tem feito aos Estados Unidos desde que assumiu seu terceiro mandato, como a crítica ao uso do dólar como moeda internacional e à manutenção de órgãos internacionais como FMI e Banco Mundial, controlados pelos EUA e pelas potências europeias. “Tudo isso é visto com extrema negatividade por Washington. E isso também causou avarias na visão norte-americana de que o Brasil representa. A mídia americana vem criticando drasticamente o presidente Joe Biden por ter abertamente apoiado o presidente Lula na campanha eleitoral brasileira e, agora, o presidente Lula inicia o seu mandato criticando as instituições americanas, a ordem mundial liderada pelos Estados Unidos e até mesmo o dólar, que é um dos grandes orgulhos e potências”, aponta Igor Lucena. No entanto, o chefe da Casa Branca manteve uma postura estratégica e se utilizou da reunião para tratar de uma pauta em destaque no seu mandato, as questões trabalhistas, no lançamento da Iniciativa Global Para o Avanço dos Direitos Trabalhistas na Economia do Século XXI. Na cerimônia, Lula chegou a declarar que o encontro é o “renascer de um novo tempo entre Brasil e os Estados Unidos”.
O doutor em relações internacionais destaca que a pauta comum entre os dois países forçou Lula a mudar seu recente posicionamento, bem como traz o tema de melhora da qualidade de emprego e salários à tona em um momento que os Estados Unidos enfrentam greve nas montadoras. “A United Auto Workers, que é o maior sindicato americano, que junta os funcionários da Stellantis, da General Motors, em todas as suas marcas, e da Ford estão em uma grande greve, querendo mais de 30% de aumento, enquanto as montadoras propõem até 20%, o que é muita coisa pelos próximos anos. Isso significa que é uma pauta conjunta e que é bem vista pelos americanos e também pelos brasileiros, da base de esquerda dos dois presidentes. Esse acordo mostrou que existem pontos, além da ecologia e da defesa do meio ambiente, que são caros aos dois presidentes.”
Lucena também aponta que o indicativo de uma boa relação entre Biden e Lula pode ser positivo para a campanha brasileira de se tornar parte do Conselho de Segurança da ONU. “A reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) começa a ser defendida pelo governo americano. Isso porque a reforma prevê a expansão dos membros permanentes, como por exemplo, a entrada de Japão, Alemanha e Brasil. Antigamente os americanos não eram a favor dessa divisão de poder, porque quando você aumenta os membros do conselho de segurança, você de fato está expandindo, dando mais poder para outras nações e diminuindo seu próprio poder, o que os americanos eram nitidamente contra.”
“Agora, como essa expansão passa também pela diluição do poder da China e da Rússia, a expansão dos membros do Conselho de Segurança também significa a possibilidade do fim do veto. Você diminui o poder de veto, retirando o poder de veto da China e da Rússia e isso pode, na prática, diminuir o poder dentro do conselho da China e da Rússia. Se a diminuição do poder norte-americano significa trazer aliados para mais perto e diminuir também o poder da China e da Rússia, isso pode ser uma vitória para os Estados Unidos, uma vitória para a Aliança Atlântica, uma vitória para a OTAN e, claro, uma vitória para o Brasil”, analisa.
Acordo entre Mercosul e UE na mira de Lula
No plano econômico, o Acordo de Associação Mercosul-União Europeia é um tratado que tem sido desejado pelo governo Lula. O documento que reúne negociações concluídas em 28 de junho de 2019 e ainda depende do processo de revisão, assinatura e ratificação dos blocos econômicos não poderia ficar de fora das mesas de negociação da Assembleia da ONU. Nesse sentido, o presidente Lula fez encontro bilateral com o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, e reuniões com o presidente da Áustria, Alexander Van der Bellen, o primeiro-ministro da Noruega, Jonas Gahr Støre, e o presidente da Suíça, Alain Berset. Para Igor Lucena, essas movimentações do presidente brasileiro fortalecem a expectativa de que o acordo possa ser fechado ainda neste ano. “O mundo germânico, que envolve a Áustria, a Alemanha e a Suíça, tem um forte parque industrial que tem interesses em realizar investimentos diretos no Brasil. Grandes empresas desses países já operam no Brasil em diversos setores de economia, então, acho que isso pode ser um avanço.”
“Precisamos do apoio da Alemanha para a ratificação do Acordo Mercosul e União Europeia, então, se o Brasil conseguir mais apoio dos alemães, lembrando que a presidente Ursula von der Leyen, da Comissão Europeia, é alemã, isso pode diminuir as arestas com os franceses, que são os que colocam mais empecilhos, por causa da agricultura francesa. Acredito que isso passou pelas mesas de discussão, e o chanceler Scholz pode ajudar o presidente Lula, até porque ele já veio ao Brasil”, analisa.
Ausências de líderes e tentativa de ‘neutralidade’ de Lula
Com o tema "Paz, Prosperidade, Progresso e Sustentabilidade", a Assembleia Geral da ONU reuniu líderes de 190 países em Nova York. Apesar de ser um dos maiores eventos internacionais do ano, a assembleia de 2023 não contou com a participação de diversos chefes de Estado centrais para a comunidade internacional. Dentre eles, estão Xi Jinping, da China; Vladimir Putin, da Rússia; Emmanuel Macron, da França; Rishi Sunak, do Reino Unido; e Narenda Modi, da Índia. Com isso, Joe Biden foi o único líder do Conselho de Segurança da ONU presente. O especialista em relações internacionais destaca que tais ausências prejudicaram o potencial brasileiro durante a assembleia. “No geral, se teve um desempenho positivo, entretanto, tiveram pontos negativos. Rishi Sunak, Xi Jinping e Emmanuel Macron não terem estado com seus próprios problemas internos diminuiu muito a visibilidade do Brasil. Isso foi muito negativo, foi uma das assembleias mais esvaziadas dos últimos tempos.”
Como ponto negativo da viagem de Lula, Igor Lucena também destaca a tentativa do presidente em se manter neutro com relação aos conflitos internacionais e sustentar uma postura “idealista” de como as nações deveriam se relacionar. “O mundo é muito mais realista, e cada nação e cada bloco de interesses está vendo as suas próprias visões de mundo. O presidente Lula tenta se agarrar a uma neutralidade que, ao meu ver, é inexistente, ou incapaz de coexistir no mundo em que eu acredito que estamos, dentro de uma nova guerra fria. Lula quer refutar que é uma nova guerra fria, refutar zonas de influência, mas eu acho que é inevitável. É o mundo como ele é, e nós não podemos fugir dele.” Lucena defende um maior pragmatismo na postura que o Brasil toma internacionalmente.
“Nós temos que criar nossas próprias estratégias para como o Brasil vai tirar melhor proveito dessa nova configuração mundial, onde nós somos os atores, mas nós não temos o chamado ‘shaping power’ capaz de mudar essa realidade. Mas, de uma maneira geral, acho que tivemos sim um bom efeito e eu acho que pode trazer bons frutos para o Brasil, quando a gente faz uma análise do globo.”
Fonte: Jovem Pan