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Pau que dá para Chico também dá para Francisca? Era uma vez um sistema tributário feminista

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Existem muitas formas pelas quais o sistema tributário nacional se entrelaça com questões femininas Tem um ponto que sou suspeitíssima: acho a tributação um dos temas mais interessantes do universo. Podem me servir como direito tributário, política tributária, marketing tributário, história tributária, sociologia tributária, linguagem tributária, psicologia tributária. Papo tudo feliz da vida. Isso porque há uma guerra dos tronos tributária, que gira ao redor da narrativa do que deve, do que não deve, e de como deve ser tributado. Treta pura. Já disse e repito: “Novela, para quê?”

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Há também, no Brasil dos últimos tempos, um conflito entre os tributaristas: uns que dizem “Discussão sobre raça e gênero, para que?” Outros que dizem: “Como não discutir gênero e raça ao falar de poder (e, por conseguinte, de tributação)?”. Por outro lado, a discussão de tributação e gênero envolve uma apropriação das/dos tributaristas de uma nova visão do feminismo, como um fenômeno social de horizontalização das relações sociais, inclusive no ultra masculino mercado tributário. É uma discussão também sobre quem pode criar narrativas sobre o sistema tributário desejado.

Existem muitas formas pelas quais o sistema tributário nacional se entrelaça com questões femininas, seja no viés biológico, seja na sua construção social. Por exemplo, de um lado, há a questão da regressividade tributária que afeta especialmente mulheres negras, consequência da cor e do gênero da pobreza. De outro, há ainda o combate da tributação de produtos típicos de necessidades biológicas femininas como absorventes e pílulas. No campo da tributação sobre a renda, discute-se a incidência de IRPF sobre pensões alimentícias assim como isenções e regimes especiais que favorecem mais os homens.

Não é produto exclusivo brasileiro. Manifestações ao redor do mundo tem colocado em cheque a forma como a tributação e as mulheres interagem. Até a OCDE escreveu sobre o assunto. No caso do Brasil, discussões judiciais (tributação do salário-maternidade e das pensões) e projetos de lei com isenções e políticas fiscais tem posto o que alguns tem chamado de “tributação e gênero” na mesa.

As críticas são várias e de qualidades distintas. Algumas apelam para o tradicional: “Coisa de comunista sem depilação a laser”. Outros dizem que é um jeito de pirraçar por um palco. Essas críticas típicas de desqualificação do discurso feminino sem entrar no seu próprio mérito (que pode até merecer críticas) é uma das táticas masculinas mais odiosas e velhas de guerra. Não vale sequer que eu gaste a minha tinta.

Uma outra crítica, mais qualificada, indica que boa parte das demandas do discurso tributação e gênero resolve questões de mulheres de classe média “média” e “alta”, com capacidade contributiva, o que pode em certa medida aumentar a regressividade tributária, reforçando a verdadeira desigualdade social. Além disso, medidas de desoneração sobre o consumo dificilmente levam ao repasse da redução de preços às consumidoras. Essas críticas tem uma dose de pé e cabeça. Deveras, mulheres que recebem pensão alimentícia tributável estão do meio para cima da pirâmide social. A melhor maneira de garantir acesso a absorventes seria a sua distribuição. E as distorções causadas pela maternidade/cuidado seriam mais bem resolvidas com licença paternidade pelo mesmo período para os homens. Todas essas afirmações são verdadeiras.

Também é igualmente verdadeiro que a Constituição determina que produtos essenciais sejam tributados de maneira mais branda e que as pessoas sejam tributadas conforme sua capacidade contributiva. Pau que dá “para” Chico, tem que também dar “para” Francisca. Obviamente, as soluções dadas pelo Poder Judiciário podem terminar causando distorções como já levantei em outro post publicado no blog Fio da Meada no caso das pensões alimentícias. Mas isso porque o Judiciário não é o Poder adequado para gerar soluções para problemas sistêmicos.

Era uma vez um sistema tributário feminista

Mikael Blomkvist/Pexels

Existe, por fim, uma crítica mais estrutural e ainda mais sofisticada: a de que enquanto as tributaristas-feministas discutem essas questões periféricas, gastando sua lábia, seu batom e energia para defender essas pautas, as verdadeiras pautas das mulheres em reais condições de desigualdade terminam “ocultadas”. A solução estaria em reformas mais estruturais, mais sistêmicas e não necessariamente tributária ou jurídicas. O “discurso tributação e gênero” geraria uma espécie de simbolismo vazio que permite que as dinâmicas reais de poder deem algum grau de voz a um grupo descontente apenas para mantê-lo na verdade silenciado.

De um lado, nenhuma tributarista – mulher, homem – pode ter qualquer utopia quando a capacidade de um sistema tributário resolver integralmente os problemas de desigualdade de uma determinada sociedade. Ninguém disse isso quanto a nenhuma proposta de sistema tributário feminista. Tampouco se afirmou que todas as soluções propostas dentro do sistema constitucional tributário existente são as únicas dentro de uma política pública (também tributária).

Por fim, não tenho dúvidas que há maneiras de deixar dizer, simular espaço de fala, para, ao final, silenciar. Mas também tenho como certo que não há mudanças históricas sem a criação de outras narrativas possíveis.

Era, portanto, uma vez um sistema tributário feminista, que carregava em si a potência criadora das relações horizontais.

Fonte: Valor Invest

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